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O Sertanejo: Resistência e Vida no Sertão

 A frase célebre de Euclides da Cunha, em seu livro os sertões 'O sertanejo é, antes de tudo, um forte', capturou a essência da resistência e desigualdade presenciadas na Guerra de Canudos. Este conflito representou uma batalha desproporcional: um exército armado contra um povo cuja maior arma era sua própria bravura e formação cultural. O cenário descrito é emblemático do Brasil, onde o homem do litoral, com suas modernidades, confronta o sertanejo, vítima do esquecimento preso ao sertão.

É importante considerar que o Nordeste abriga dois mundos distintos. De um lado, temos uma região rica em recursos naturais, com solo fértil e chuvas regulares, propícia para a economia agrícola, especialmente o cultivo da cana-de-açúcar. Do outro lado, encontramos o semiárido, uma terra severa, de temperaturas elevadas e solo árido, que os indígenas chamavam de 'Cantiga', devido à aparência esbranquiçada das plantas na estação seca, quando muitas perdem suas folhas.Nesse ambiente rude, o mandacaru se destaca como símbolo de resistência, assim como o sertanejo, que, ao longo do tempo, adaptou-se às duras condições para proteger sua vida. A escassez de água obriga-o a caminhar quilômetros em busca de uma fonte, seja um açude, barragem ou cacimba, muitas vezes encontrando apenas água salobra. A alimentação é precária, mas marcada por uma ética de não desperdiçar nada, utilizando ao máximo os recursos disponíveis, seja em atividades domésticas ou no sustento, e dividindo seus esforços na agricultura familiar para mitigar a pobreza." 


Lembre-se de que a migração para as áreas do sertão, saindo das terras agricultáveis em direção à caatinga, ocorreu no início do século XVIII. Esse movimento deu origem à criação de gado e foi fundamental para a colonização do interior do Nordeste, que se estabeleceu com o propósito da pecuária. Essa cultura pastoril promoveu o individualismo, pois o manejo do gado em um ambiente castigado pela seca exigia grande esforço e adaptabilidade. Os vaqueiros, nômades por necessidade, tornaram-se experientes conhecedores dos sinais da natureza, enfrentando desafios em todas as estações do ano. Uma característica marcante do sertanejo é sua profunda religiosidade, que se tornou a base de sua educação. Isolados do litoral e espalhados por vastos territórios, os missionários não conseguiam cobrir toda a região, o que resultou na formação de um catolicismo popular, transmitido de geração em geração. Nos séculos seguintes, os beatos ganharam força e passaram a influenciar a religiosidade local, incorporando rituais culturais indígenas e africanos. Esse sincretismo se manifestava em práticas como orações de proteção, rezas para fechar o corpo, adivinhações e curas através de plantas medicinais. segundo o inglês Henry Koster, em suas observações de viagem, ele afirma que 

O sertanejo é corajoso, sincero, generoso e hospitaleiro, ainda que extremamente ignorante e dado a crenças nas encantações, relíquias e outras coisas da mesma ordem. Ainda mais é vingativo. As ofensas muito dificilmente são perdoadas e, em falta da lei, cada um exerce a justiça pelas próprias mãos. ´´ KOSTER, Henry. ( 1942. PP.205-206)

O sertanejo é fruto de um tempo imprevisível, marcado por um mundo de valentia desde os primeiros tempos de ocupação, quando travou guerras contra os indígenas, guerreiros ferozes e excelentes flecheiros. Além disso, enfrentou desafios como a luta contra felinos, como as onças, que causavam grandes perdas aos rebanhos. Conviver com esses fatores traiçoeiros tornou o homem do sertão desconfiado, vivendo em um lugar perigoso, sujeito a emboscadas, encruzilhadas e tiros de pé de pau. frederico pernambucano de mello revela 


Cujos traços mais salientes podem ser resumidos na predominância do individual sobre o coletivo no plano do trabalho e nos sentimentos de independência, autonomia, livre-arbítrio e improvisação, como características principais do homem condicionado pelo cenário agressivo e vastíssimo que é o sertão. Neste, diferentemente do que ocorrera na mata, tudo se fez na insegurança (MELLO, 2004, p. 42). 


Essa violência local perdura até os dias atuais; não é raro encontrar, nas zonas rurais, pessoas que ainda carregam peixeiras embainhadas na cintura. Em um mundo de hostilidade, as crianças, desde cedo, têm contato com o sangue, ajudando suas famílias no abate de bodes, bois e nas caçadas dentro dos matos. Acima de tudo, o homem do sertão tem um escudo ético pautado pela palavra, onde o "fio de bigode" vale mais do que qualquer papel assinado, e sua honra é zelada, se necessário, com sangue.


Seguramente, o sertão e o agreste, em várias ocasiões, sempre enfrentaram situações precárias. As casas de barro feitas de taipa, com telhados de palha seca e sem piso, abrigam um grande número de analfabetos. Longe dos centros urbanos, os vilarejos parecem parados no tempo. Enquanto o Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, passava por expressivas mudanças em sua infraestrutura, com a construção de prédios, estradas e a implementação de indústrias, esses avanços não chegavam para todos. O interior do Nordeste, por exemplo, sofria com a falta de recursos básicos para a melhoria da população, como hospitais, estradas e água de qualidade, aspectos que refletem até os dias atuais. As escolas no meio rural dependiam dos coronéis, e a falta de políticas públicas eficazes, aliada à escassez de oportunidades de emprego, atrofiava o crescimento da região. O monopólio da terra dificultava a implantação de avanços. Conforme Facó (1983 p. 14) destaca: "A evolução do Nordeste, nessa época, caracterizava-se por sua extrema lentidão, própria de uma sociedade em estágio econômico seminatural, com uma divisão de classes sumária: o senhor de grandes extensões de terras e o homem sem terra, o semi-servo. A população da zona nordestina além da faixa litorânea não recebia sequer a influência benéfica das frágeis conquistas de tipo burguês que se operam nas zonas marítimas urbanas." 


A melhoria no bem-estar era uma perspectiva fadada pela dura realidade da vida sertaneja, marcada pela constante ameaça da fome e pela violência endêmica. Esta violência, em grande parte advinda dos coronéis, representantes políticos da região, ou das péssimas condições de trabalho e falta de apoio da justiça pública, resultava na ausência de lei em muitos lugares. Essa situação transformava os conflitos locais em brigas generalizadas. A oligarquia, profundamente ligada à política, fomentava rivalidades e disputas entre as famílias dominantes. Cada clã buscava obter vantagens e ascender economicamente, intensificando ainda mais as disputas e a concentração de poder nas mãos de poucos

Desde cedo, o sertanejo enfrenta o sol escaldante na busca pela sobrevivência. Espera-se que chova para que possa extrair algo de sua agricultura precária. Sem perspectivas de vida e constantemente afetado por doenças como diarreia, desnutrição e anemia, problemas que contribuem para uma alta taxa de mortalidade infantil, o sertanejo é empurrado para a margem da sociedade. A única alternativa que lhe resta é tornar-se jagunço de seus patrões, encarregado de garantir a segurança e de eliminar adversários dos mandatários. Essa prática ganhou força na ausência do Estado, perpetuando uma realidade de miséria e violência.


Nessas circunstâncias, em um terreno árido e implacável, marcado por uma violência preexistente no sertão, emergiu um fenômeno de banditismo rural conhecido como cangaço, que deixou uma marca indelével na história. Ao longo dos anos, uma série de líderes se destacou nesse cenário desafiador da Caatinga, incluindo figuras como Antônio Silvino, Cabeleira, Jesuíno Brilhante e Sinhô Pereira. Contudo, nenhum outro cangaceiro alcançou tanta notoriedade quanto Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião. Ele liderou o cangaço de forma proeminente de 1920 a 1938, durante um período marcado por agitações, revoltas e terror nos sete estados nordestinos.



sugestão de leitura

CUNHA, Euclides da. Os sertões. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 1998;

MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa, 2004.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.




Escritor por : SILVANO CORDEIRO DA ROCHA.

















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