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"Capitoa" D. Brites de Albuquerque: A primeira governante de Pernambuco

    Diante da indesejável presença francesa na América Portuguesa e do avanço espanhol na região, Dom João III, rei de Portugal, reconheceu a urgência de ocupar e administrar eficazmente suas terras nas Américas. Assim, o Estado português passou a abordar, de forma estratégica, a tarefa de colonização dessas novas terras. Em 1532, D. João III instituiu o sistema de donatarias para o povoamento da colônia — um modelo administrativo que já havia demonstrado sucesso na ilha da Madeira e nos arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde.

    Nesse contexto, o litoral das novas terras americanas foi segmentado em capitanias, e as parcelas de terra foram concedidas a nobres de confiança da Coroa Portuguesa. A esses donatários cabia a responsabilidade de ocupar a costa entre Pernambuco e o rio da Prata, incluindo a obrigação de armar navios, recrutar pessoas, arcar com as despesas e administrar a nova colônia. Duarte Coelho Pereira foi agraciado com a capitania de Pernambuco como recompensa pelos serviços prestados à Coroa, através de uma carta de doação datada de 10 de março de 1534. No ano seguinte, ele chegou ao Brasil acompanhado de alguns familiares. Todavia, Duarte Coelho não foi único governante dessa região, sob sua sombra estava a figura de Brites Mendes de Albuquerque, uma mulher cuja atuação foi essencial para o crescimento e desenvolvimento da Capitania. 

    Brites Mendes de Albuquerque nasceu em Lisboa por volta de 1517, filha de Lopo de Albuquerque e Joana de Bulhões, com ascendência nobre, incluindo a linhagem de Afonso Sanches, filho ilegítimo do rei D. Diniz. Crescendo em um ambiente de nobreza, Brites tornou-se dama do Paço Real, onde conheceu Duarte Coelho, um chefe militar com prestígio por suas expedições marítimas. Aos dezoito anos, casou-se e mudou-se para a América portuguesa em 1535, abandonando seu conforto para enfrentar o desconhecido. Apesar de sua origem privilegiada, sua nova função exigia que se tornasse uma matrona exemplar, conforme os padrões da elite colonial, sendo católica, casada e mãe, servindo como modelo para outras mulheres. Durante seus primeiros anos na capitania, enquanto colonizadora, foi descrita pelo padre José de Anchieta como a "mãe do povo de Pernambuco", evidenciando seu papel devoto e honrado perante a Igreja e a Coroa.

    Mais adiante, Brites Albuquerque assumiu o governo da capitania de Pernambuco pela primeira vez em 1553, após a partida de seu esposo, Duarte Coelho que volta a Portugal acompanhado de seus filhos adolescentes, com o intuito de investigar as questões relacionadas às produções de engenho e à administração da capitania. Contudo, Duarte não alcança seu objetivo, falecendo no ano seguinte e deixando sua esposa à frente do governo interino até que seu primogênito (Duarte de Albuquerque Coelho) atinja a maioridade. Brites, auxiliada por seu irmão Jerônimo de Albuquerque, governou até 1560, quando seu primogênito retornou, porém pouco ajudou na administração da capitania. Reconhecida como "Capitoa" por sua firmeza política, Brites reassumiu a liderança da capitania após a convocação de Duarte Albuquerque para uma expedição militar que resultou na derrota portuguesa na batalha de Alcácer-Quibir em 1578. Ela continuou no comando até seu falecimento em 1584.

    Dessa forma, desafiando os paradigmas impostos à sua figura, Brites Mendes de Albuquerque destacou-se em uma época em que as mulheres eram moldadas por cronistas e letrados como mártires da fé católica, obedecendo a padrões ideais de comportamento que visavam o controle social do feminino na colônia. Comumente posicionadas como retaguarda de homens e vistas como meros objetos de procriação, D. Brites teve um impacto significativo na história de Pernambuco ao assumir responsabilidades que não eram atribuídas ao seu gênero, demonstrando força, firmeza administrativa e um papel proeminente, ela contestou a narrativa histórica que, por muito tempo, minimizou a participação feminina na construção do mundo colonial, um universo intimamente ligado ao pensamento europeu patriarcal.

    Embora tenha contribuído para a resistência contra as populações indígenas, Brites desempenhou um papel crucial na manutenção da capitania de Pernambuco, promovendo a urbanização de núcleos como Recife, Olinda e Igarassu; a plantação de coqueiros ao longo do litoral e a ampliação dos canaviais. Ela também exerceu controle legislativo e administrativo sobre as questões dos colonos, o que permitiu a Pernambuco destacar-se como uma das poucas capitanias a alcançar ascensão econômica e ordem social. 

    Apesar de muito se conhecer sobre a vida e a administração colonial durante o período duartino, pouco se discute acerca do governo de sua esposa, Brites de Albuquerque. Ela assumiu o cargo interinamente e, posteriormente, com todas as honras e responsabilidades inerentes ao título, exerceu efetivamente o comando das terras pernambucanas até sua morte.

    O conhecimento da história de figuras femininas como Brites de Albuquerque revela o impacto e a visibilidade que elas representaram em sua época, destacando seu legado como "a primeira governante das Américas". Contudo, essa contribuição é pouco debatida na historiografia colonial, que frequentemente constrói a visão do feminino a partir de uma perspectiva limitada. Nessa narrativa, as mulheres são retratadas como seres desprovidos de identidade ou função social, muitas vezes ofuscadas por figuras masculinas, o que reforça o caráter de subserviência a que eram submetidas. Assim, é pertinente afirmar que, ao longo de quase cinco séculos da história de Pernambuco, Brites de Albuquerque se destacou como a primeira mulher a governar oficialmente o estado, o que revela as complexas relações de gênero que permeiam a trajetória histórica e historiográfica da nossa região.


Sugestões de leitura: 

GOMES, Alberon de Lemos. As matronas da Nova Lusitânia: casar, procriar, orar. Mneme - Revista de Humanidades, [S. l.], v. 5, n. 12, 2010. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/mneme/article/view/251. Acesso em: 26 out. 2024.

REZZUTTI, Paulo. Mulheres do Brasil: a história não contada. Rio de Janeiro, LeYa, 2018.


Escrito por: Higo Braga e Ruan Chalys.

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